Primeiro momento
 Meu pai chamou e disse:
 mulher, chegou a hora, eis o senhor da tua vida
 aquele que te fará árvore
Apressa-te Ozoro,
parte as pulseiras e acende o fogo.
Acende o fogo principal, o fogo do fogo, aquele que arde
      noite e sal.
Prepara as panelas e a esteira
e o frasco dos perfumes mais secretos
Este homem pagou mais bois, tecidos e enxadas do que
     aqueles que eu pedi
este homem atravessou o mar
não ouvi falar do clã a que pertence
o homem atravessou o mar e é da cor do espírito
Nossa vida é a chama do lugar
Que se consome enquanto ilumina a noite
Voz de Ozoro:
Tate tate
meus todos parentes de sangue
os do lado do arco
os do lado do cesto
tate tate
porque me acordas para um homem para a vida
se ainda estou possessa de um espírito único
aquele que não se deu a conhecer
meu bracelete entrançado
não se quebrou e é feito das fibras da minha própria essência
cordão umbilical
a parte da mãe
meu bracelete entrançado ainda não se quebrou
Tate tate
ouve a voz de meu pequeno arco esticado
as canções de rapariga
minha dança que curva a noite
ainda não chegou meu tempo de mulher
o tempo que chegou
é lento como um sangue
que regula agora as luas
para mim
de vinte oito em vinte e oito dias
Segundo momento
Voz de Magyar:
 Senhor:
 Atravessei o mar de dentro e numa pequena barcaça
desci de Vardar para Salônica, durante a batalha das
sombras. De todas as montanhas, a que conheço expõe um
ventre de neve permanente e uma pele gretada pelo frio.
Nasci perto do Tisza Negro, junto à nascente.
 Naveguei um oceano inteiro no interior de um navio
habitado de fantasmas e outros seres de todas as cores com
as mesmas grilhetas. Como eles mastiguei devagarinho a
condição humana e provei o sangue o suor e as lágrimas do
desespero. São amargos, senhor, são amargos e nem sempre
servem a condição maior da nossa sede. Vivi durante
muitos meses o sono gelado da solidão.
 Senhor
 Eu trago um pouco de vinho sonolento do interior da
terra e a estratégia de uma partida húngara, levo o bispo por
um caminho direto até à casa do rei, senhor. Por isso aqui
estou e me apresento, meu nome igual ao nome de meu
povo, Magyar, os das viagens, Magyar, o dos ciganos.
 Senhor
 Eu trouxe meus cavalos e vos ofereço minha ciência de
trigo, em troca peço guias dos caminhos novos, alimento
para as caravanas, licença para o Ochilombo e a mão de
Ozoro a mais-que-perfeita.
 Senhor, deixai que ela me cure da febre e da dor que trago
da montanha para lá dos Cárpatos.
 Senhor, deixai que ela me ensine a ser da terra.
Terceiro momento
 Coro das mais velhas:
 Fomos nós que preparamos Ozoro, na casa redonda
  muitos dias, muitas noites na casa redonda
 Fomos nós que lhe untamos, de mel, os seios
     na casa redonda
 Com perfumes, tacula e fumo velho esculpimos um corpo
      na casa redonda
 Nosso foi o primeiro grito perante tanta beleza:
 Oh, rapariga na palhoça, sentada, ergue-te para que
     possamos contemplar-te!
Quarto momento
 Vozes das meninas:
 Meu nome é terra e por isso me movo lentamente meia
volta, uma volta, volta e meia, para que o tempo me
encontre e se componha.
 Sou a companheira favorita de Ozoro do tempo da casa
redonda. 
 Meu nome é pássaro, como o nome do clã a que
pertenço. Com Ozoro descobri o lago e as quatro faces da
lua, e vi primeiro que todos a cintura de salalé que se
contrai à volta das nossas terras.
 Meu nome é flor e sou especialmente preparada para
cuidar do lugar onde a alma repousa. Com Ozoro eu tenho
o cheiro, guardado no frasco de perfumes mais pequeno - o
do mistério.
 Meu nome é princípio e eu tenho as mãos do lugar e a
ciência dos tecidos como as mais velhas. Para Ozoro, a princesa,
eu já teci o cinto de pedras apertadas, o mais belo cinto,
de contas vindas do outro lado do tempo da própria casa de
Suku. Para o tecer preparei todos os dias as mãos com preciosos
cremes da montanha. Apertei cada conta no nó fechado
igual ao que fecha a vida em cada recém-nascido. Para Ozoro
eu teci o cinto mais apertado das terras altas.
 Meu nome é memória e com as velhas treinei cada fala
 - a do caçador nas suas caçadas
 - a dos homens no seu trabalho
 - o canto das mulheres nas suas lavras
 - a das raparigas no seu andar
 - o canto da rainha na sua realeza
 - o som das nuvens na sua chuva
 Na lavra da fala faço meu trabalho, como a casa sem
porta e sem mobília, não tão perfeita como a casa onde o
rei medita, tão redonda como a casa onde Ozoro e as
meninas aprenderam a condição de mulheres.
Coro das meninas:
 A casa das mulheres
 A casa da meditação
 A casa da chuva
 A casa das colheitas
 A casa das meninas: Terra, Flor, Pássaro, Princípio, Memória
Fala do fazedor de chuva:
 Eu que amarrei as nuvens, deixei chover dentro de mim.
Deixei uma nuvem solta, grande e
 gorda de chuva rebentar dentro de mim.
 Sangro em utima meu pranto de nuvens, choro em
Osande a princesa perfeita, a minha favorita.
Coro dos rapazes:
 Desde ontem ouvimos o rugir do leão atrás da paliçada
 E as palavras mansas do velho sábio dentro da paliçada
 Desde ontem que o leão não se afasta detrás da paliçada
 E se ouve o velho que fala com o leão atrás da paliçada
 Desde ontem o feiticeiro acende o fogo novo dentro da
       paliçada
 E se espalham as cinzas do fogo antigo atrás da paliçada
Diante de ti, Ozoro, depositamos a cesta dos frutos e
      a nossa esperança
Fala da mãe de Ozoro:
 Fui a favorita, antes do tempo me ter comido por
dentro. Semeei de filhos este chão do Bié.
 Para ti, Ozoro, encomendei os panos e fiz, eu mesma,
os cestos, as esteiras. Percorri os caminhos da missão.
Encontrei as palavras para perceber a tua nova língua e os
costumes. Com as caravanas aprendi os segredos do mar e
as histórias. Deixo-te a mais antiga
         História do pássaro Epanda e do ganso Ondjava
Há muito muito tempo estas duas aves decidiram juntar forças e fazer
o ninho em conjunto. Ondjava era um animal muito limpo e lavava e cuidava
dos seus ovos e da sua parte do ninho. Quando nasceram os filhos,
os pequenos de Epanda estavam sempre muito sujos e feios, enquanto
os de Ondjava deixavam que o sol multiplicasse de brilho as suas penas.
Um dia, Epanda raptou e escondeu os filhos de Ondjava quando esta
se afastara em busca de comida. Ondjava chorou muito e, enquanto recorria
ao juiz para resolver o caso, cuidou dos outros filhos, lavou o ninho todo
e armazenou comida para o cacimbo. Um dia os filhos limpos de Ondjava
voltaram e o juiz determinou pertencerem a esta ave, ninho, filhos e ovos,
porque só merece o lugar quem dele cuida, quem o sabe trabalhar.
Coro:
 Só merece o lugar que o sabe trabalhar
 Só é dono do lugar aquele que o pode limpar
Fala de Ladislau Magyar, o estrangeiro:
 Amada, deixa que prepare o melhor vinho e os
      tecidos
 e que, por casamento, me inicie
 nas falas de uma terra que não conheço
 no gosto de um corpo
 que principio
 Amada, há em mim um fogo limpo
 para ofertar
 e o que espero é a partilha
 para podermos limpar os dois o ninho
 para podermos criar os dois o ninho.
Fala dos feiticeiros:
 Podemos ver daqui a lua
 e dentro da lua a tua sorte, Ozoro
 aprenderás a caminhar de novo com as caravanas
 e estás condenada às viagens, Ozoro
 teus filhos nascerão nos caminhos
 serão eles próprios caminhos
 da Lunda
 do Rio Grande
 se o cágado não sobe às árvores, Ozoro
 alguém o faz subir!
Última fala de Ozoro antes da viagem:
 Amar é como a vida
 Amar é como a chama do lugar
 que se consome enquanto se ilumina
 por dentro da noite.
Ana Paula Tavares (poetisa angolana)
   in O lago da lua